segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Abaixo, três versões de uma mesma história, com a mesma temática, partindo de um conto maior, mais ambientado. Em seguida um conto menor, mais enxuto, até chegar a um mini-conto. Mais uma atividade desenvolvida da oficina de criação literária. Ótimo exercício.










(DES)ESPERANÇA
(1a. versão)

D. Elvira ajeitava as brasas e já pensava no sacrifício que ia ser conseguir mais lenha. Já não aguentava procurar e cortar a madeira e o neto ainda era magricela demais pra dar conta do serviço pesado. Com o vizinho mais próximo ela não queria conversa e toda vez que precisava de mais lenha tinha que torcer pra aparecer algum desavisado. Mas já fazia tempo que não apeava nenhuma criatura por aquelas bandas.
– Eliaaaasss, vem armuçá, minino – berrou a velhinha suada de mexer o angu no forno à lenha.
  Há muito essa era a única comida que podia dar ao neto. A pensão do marido e a fraqueza do corpo não permitiam variar. A situação piorou ainda mais quando seu único filho tombou morto por causa do coração fraco. – Tão fraco que num servia nem pra escolhê muié – dizia sempre. A nora, nem bem enterrou o marido, fugiu com o vizinho de cerca e largou a cria pra ela cuidar e dar de comer. – Discarada – pensou. E por isso relutava em pedir ajuda na vizinhança, pois sempre a atendiam com olhar de troça.
– To indo agorinha  – respondeu o menino que se demorava olhando o céu.
Desde cedinho brincava à sombra da enorme paineira e, vez ou outra, fitava o céu e matutava, com ares de querer saber. Quando finalmente apontou na cozinha de cimento cru vermelho, a avó já estava armando outro berro.
    Senta e come, minino tinhoso.
    Angu de novo, voinha? – falava por falar, só para provocar a pobrezinha. Como se fosse um arriscado acordo que houvesse firmado.
Sem responder, D. Elvira suspirou fundo e deu um safanão na cabeça do moleque, que não esboçou reclamação ou choro, pois não tinha um dia sequer que não levava tapa, beliscão ou coisa parecida. Nem sentia mais, acostumou-se com o carinho rude da avó. Fazia parte do acordo.
    Voinha, as nuvem é feita do quê? A senhora já pegou nelas...?
    Pare de marmota - Interrompeu antes que ele conseguisse enfiar vinte perguntas de uma só vez – Perguntadeiro como meu  fio João – lembrou, saudosa. A cada vez que se lembrava do filho, o ventre latejava insistente. Dor que só as mães conhecem. E como o filho também se parecia com o marido, a pontada no peito também aparecia. Pontada que só quem perdeu um companheiro valoroso era capaz de sentir.
Pensativo, enquanto engolia cada colherada da insonsa comida, Elias maquinava sobre a dúvida que lhe perseguia desde o começo daquela manhã.  Se tivesse  a mãe ou pai por perto, eles sabia responder – lamentou em pensamento. Elias ainda não entendia direito o porquê dos pais terem sumido. Toda vez que perguntava, a avozinha ralhava com ele. Também fazia parte do acordo.
    Deve de sê de paina. As paina deve sair avuano e na hora que chega no céu elas vira nuvem.
Outro tabefe.
Mas a dúvida não arrefeceu. Atiçava e provocava comichão. Ia e vinha nas milhares de possibilidades. Pelo menos esquecia do angu empelotado. Matutou, ponderou e, prestes a terminar a gororoba, finalmente achou a resposta.
    Já sei, é de argodão doce – disse satisfeito e orgulhoso.
  Cale a boca e come esse angu, disgraça – disse a velha, sentindo o peito apertado de saudade, dor e amargura.
    Ta bão. Mas que é, é. No dia que eu consegui pegá a nuvem, vamo come ela tudinho, voinha.
Sorriu discretamente ao ver a teimosia de seu marido e de seu filho estampada em cores vivas em seu neto. Mas, ato contínuo, lascou um beliscão.
De um pulo, Elias correu segurando o braço doído. Rindo e pulando, voltou à sombra da paineira para tentar sentir o doce das nuvens acima dele. Mas elas iam alto demais. Agora precisava encontrar um jeito de trazer elas para perto, ou quem sabe, alcança-las lá no alto. 


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(DES)ESPERANÇA
(2a. versão)


               - Eliaaaasss, vem armuçá, minino – berrou a velhinha suada de mexer o angu no forno à lenha.
               - To indo agorinha  – respondeu o menino que se demorava olhando o céu.
Quando finalmente apontou na cozinha de cimento cru vermelho, a avó já estava armando outro berro.
          - Senta e come, minino tinhoso.
              Angu de novo, voinha?
      Sem responder, deu um safanão na cabeça do moleque.
              Voinha, as nuvem é feita do quê? A senhora já pegou nelas?
              Pare de marmota.
Pensativo, enquanto engolia cada colherada da insonsa comida, Elias maquinava sobre a dúvida que lhe perseguia desde o começo daquela manhã.
               Deve de sê de paina.
      Outro tabefe.
Mas a dúvida não arrefeceu. Atiçava e provocava comichão. Ia e vinha nas milhares de possibilidades. Pelo menos esquecia do angu empelotado. Matutou, ponderou e prestes a terminar a gororoba, finalmente achou a resposta.
                 Já sei, é de argodão doce – disse satisfeito.
               Cale a boca e come esse angu, disgraça.



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(DES)ESPERANÇA
(3a. versão - Mini Conto)


Engolindo a última porção do angu, sonhava com o algodão doce das nuvens.






sexta-feira, 20 de setembro de 2013


SAUDADE 

        No momento em que a porta se abriu e vi você, salguei o rosto. O sol se escondendo por detrás emprestou-lhe uma aura dourada e laranja, como fosse a aparição de uma santa. Que visão!
     Dois passos seus e eu ainda em êxtase. Admiro os detalhes preciosos de seu rosto há tanto distante. Um ano de espera. Permaneço parado, calado, entorpecido. Meus olhos tagarelam pelo seu corpo. Falam aos borbotões. Palavras de afago e desejo.
     Ameaço reagir. Você se aproxima mansamente, como quem se deleita com o meu martírio catatônico. Sinto seu perfume, o mesmo que me aqueceu nas noites solitárias desse ano secular.
      Frente a frente você segura minha mão trêmula, evita meu olhar. Aperta um pouco mais e pousa-a sobre sua barriga: – Eu não sei o que dizer. Aconteceu.
   Aconteceu que meus olhos secaram, meu rosto se desfigurou, minha mão desejou adentrar suas entranhas. Mas, ainda assim, cedi ao impulso de te abraçar ternamente. Depois decido o rumo que meu sentimento terá.
(Alexandre Braoios)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Este é mais um conto inspirado em letra de música, também um dos primeiros que fiz. A música Domingo no Parque de Gilberto Gil foi lançada em 1967 no Festival da Canção, sendo classificada em segundo lugar, e se tornou um marco da MPB (veja o vídeo original no final onde ele canta com Os Mutantes). Como fã de Gilberto Gil, tive receio de alterar uma letra tão bem construída (praticamente uma blasfêmia) e, por isso, procurei ser fiel tanto no conteúdo como na forma como Gil compôs a música. De qualquer forma, uma homenagem. Apenas isso. No texto faço referência também a um trecho da música Faroeste Caboclo da banda Legião Urbana.
E não esqueça de deixar seu comentário, independente da opinião.



DOMINGO NO PARQUE
(por Alexandre Braoios)


        José. Feirante. Simpático e bonachão. Domingo era seu dia de descer ao inferno. Madrugava. Enfrentava o sol. Maldizia não poder ir mais cedo ao parque. Ainda assim o sorriso era permanente. Irresistível, até.
Sua banca era disputada, herdara os fregueses do pai. Alheias às frutas fresquinhas, muitas meninas iam esperançosas de receber uma olhadela insinuante. Pobrezinhas, os anseios de José já tinham dona e seus olhos, submissos ao coração, não ousavam reparar as pretendentes que se acotovelavam fingindo escolher a melhor maçã.
            João. Pedreiro. Amigo-irmão de José e exatamente seu oposto. Subia aos céus nos domingos. Somente aos domingos deixava as encrencas e o mau humor. Não era bonito como José. Ia bem cedo para o parque, paquerava todas as meninas. Mas tinha sua preferida.
            João frequentou a escola, mas gostava de erguer paredes e ver seu trabalho ganhando forma lentamente. Seu pai também foi pedreiro. Juntos ergueram a casa onde moravam e foi a partir daí que João se decidiu pelo ofício. Se tinha briga, João estava no meio, sem nem mesmo perguntar o motivo. Nunca deixava passar um bela garota por sua obra sem antes fazer algum comentário malicioso ou mesmo um assovio descarado. Forte, rude e com um sorriso raro, fazia sucesso com as mulheres, mais pela lábia do que pela beleza.
            Juliana. Menina moça. Criada para casar. Morava na roça. Vida dura, mas feliz. Romântica. Dividida entre a simpatia de José e a virilidade de João.
            Desde criança Juliana foi tratada como flor rara, dona de uma beleza lancinante e delicadeza exemplar. Aprendera a bordar e a cozinhar com sua dedicada avó. Seu sonho era se casar e ter quatro filhos. Dois casais, predizia com os nomes escolhidos há muito. Tinha pouco estudo, mas era apaixonada pelos livros. Preferia as histórias de amor recheadas de drama e, certamente, com um final redundantemente feliz.
            Naquele domingo, já passava das duas horas quando José chegou ao parque. Seus olhos correram todos os rostos procurando por Juliana. Hoje ele iria se declarar. Mas como que por maldição, avistou-a enlaçada ao braço de João.
Juliana e João aguardavam sorridentes a vez de entrar na roda gigante enquanto dividiam o mesmo sorvete de morango. Puro pretexto para um beijo indireto. A cada investida no sorvete, sua boca em rubro mesclava-se ao vermelho gelado. Que visão mais linda, pensou José. Mas não eram seus lábios que levemente roçavam os de Juliana. Uma dor aguda instalou-se e dissipou por completo seu sorriso.
O casal se sentou e a roda girou vagarosamente. João e Juliana eram só sorrisos e abraços. Juliana tinha uma enorme rosa na mão. José se lembrou de ter indicado mais cedo a João onde ficava a melhor barraca de flores da feira. Feito curare em dardos, os espinhos certeiros cravejaram o alvo: o peito ofegante de José. Por um instante, os tons de vermelho se fundiram. A rosa, o sorvete, o batom. E os olhos raivosos tingiram-se de escarlate.
            Esperou que a roda parasse. Faca desembainhada. Três passos firmes. Uma estocada furiosa rasgou o peito de Juliana, fazendo brotar mais um tom de vermelho. A tela sombria ganhava forma. Rosa. Sorvete. Batom. Olhos. Sangue. A paixão, o sabor, a sedução, a dor e a vida exageradamente desenhados na tela nua.
            Jeremias, um maconheiro sem vergonha que passava por ali, em vão, tentou segurar José. Mais uma estocada, ainda mais raivosa. Mais um tom. Vermelho muito escuro, como o tijolo cru. João tombou, qual a pincelada caprichosa na obra ainda por ser concluída.
José de joelhos. Faca na mão. Sua alma em prantos encharcava-se com as tintas monocromáticas. Nesse domingo José virou João. João foi José. E Juliana, sempre Juliana, vislumbrou como um último lampejo o fim dos seus domingos felizes, domingos que anunciavam mudanças. Domingos que jamais tornaria a ver. À força, a roda cessou, como se lamentasse, rangendo, a ferrugem corrosiva de suas engrenagens.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013


Esse conto foi escrito como parte das atividades realizadas durante a Oficina de Escrita Criativa do Prof. Marcelo Spalding. A proposta foi elaborar um conto a partir de uma foto. Sempre gostei dessa foto e coincidentemente ela foi uma das opções dada. 



 OS OLHOS DE MONA LISA

            Apressada, Sophia caminhava pela rua principal de seu vilarejo naquela fria manhã de outono tão típico do hemisfério norte. O vento cortante envolvia cada centímetro de sua pele suavemente morena, tão candidamente macia, feito a mais pura seda. Inútil cruzar os braços sobre o peito, o frio lhe rasgava a carne.
Ao dobrar a esquina, avistou um grupo de garotos ateando fogo em um latão de lixo em meio a gargalhadas que se misturavam aos hálitos quentes condensados na atmosfera gelada. Sophia ajeitou seu véu, baixou a cabeça como sua mãe insistentemente havia lhe ensinado ao longo de seus 14 anos de vida. Não havia como chegar à feira sem ter que se expor aos olhares lupinos.
Fixou o olhar na terra batida sob seus pés, tentou não pensar em nada que seu corpo pudesse traduzir despertando a atenção dos rapazes. Nenhum outro passante se aventurava por aquela rua àquela hora da manhã. Maldita mania de madrugar para ir à feira, pensou no exato momento em que o mais alto da turma agarrou fortemente seu braço.
- Quem será que se esconde sob esse véu imundo? – zombou o suposto chefe do bando desocupado. Apertando ainda mais o braço franzino.
- Seria a dadivosa viúva da casa amarela? – fomentou outro ao prender-lhe o segundo braço. E gargalhou ciente da vil comparação.
Num esforço inglório, Sophia tentou se safar das fortes e ásperas mãos que a imobilizavam. Era possível tocar o hálito alcóolico que emanava daquelas bocas imundas. Ingrata tarefa a de tentar se soltar e manter a compostura de uma adolescente islâmica. Nada ortodoxa mas, ainda assim, islâmica. Certamente as lições de Maomé não conseguiram adentrar àqueles corações. Foi seu último pensamento organizado. Procurou manter a cabeça baixa. Em vão. O grupo todo já estava irreversivelmente ao seu redor. Em meio ao círculo que rescendia a testosterona, mal se via sua figura.
 E como um corpo sem vida, foi arrastada até o beco mais fétido que era possível supor. A luz da manhã não foi testemunha de sua desgraça. Seu corpo suportou as cinco investidas ferozes. Cinco toneladas, uma após outra, sobre seu corpo ainda por maturar. Mas sua alma, como que para poupar-se, se ocultou na mais obscura curva de suas entranhas mentais.
Saciados de sua fome criminosa, deixaram-na ali mesmo, encolhida entre o lixo, a sujeira e a vergonha. O tempo se perdeu, não o pôde precisar. Tentava recuperar a dignidade que lhe fora arrancada. Não conseguia pensar. Dolorida, sua alma ainda se refugiava. Impossível resgatá-la em meio aos escombros que se formaram, perdera-a definitivamente.
Resignadamente ergueu a cabeça quando um clarão penetrante dilatou e feriu seus imensos olhos verdes. Demorou alguns segundos para recuperar a visão e se deparou com um lindo sorriso de meia idade.
– Queria fotografá-la, linda criança – disse-lhe o sorriso. Quero captar a beleza de sua alma através desses lindos olhos – continuou, aqueles dentes alvos.
Tarde demais, pensou.
O Sr. Sorriso ajudou a levantá-la. Assim que pôs-se de pé, correu feito animal selvagem de volta para a toca.
Lentos dois anos se passaram. Sophia manteve-se reclusa em seu refúgio. Quase muda, quase surda ao resto do mundo. Nunca mais foi à feira. Abandonou as poucas amigas. Sua alma permanecia sequestrada.
Mas naquela tarde, com muito esforço decidiu desentocar-se. Como bicho acuado, arrastou-se como fantasma pelas ruas poeirentas. Nenhum estímulo alcançava seus sentidos. Somente um corpo desprovido de essência. Quando seus pés já reclamavam toda andança vaga, viu-se postada em frente ao único jornaleiro daquele lugar. Um velho com a cara desfigurada pela idade inclemente apiedou-se e lhe ofereceu uma velha revista encalhada há meses em sua prateleira.
- Tome, menina – disse-lhe o velhote.
Apenas pegou os papéis coloridos e seguiu sofregamente rua afora. Já não conseguia andar, cambaleava como zumbi de filme B. Deixou-se cair na primeira sombra que encontrou. Exausta, pendeu o olhar para a capa ainda reluzente da revista estrangeira. Por um instante encantou-se com a figura impressa em cores vivas e seu espírito pareceu despertar do coma a que fora induzido.
Até reconhecer-se por entre todo aquele colorido, demoraram bons minutos. Demorou ainda mais para entender o que significava aquilo. Lembrou-se então do Sr. Sorriso e da repentina luz daquele dia sombrio. Sobre seu retrato leu em letras amarelas: AS MAIS BELAS FOTOS DO SÉCULO. Um arrepio poderoso percorreu todo seu corpo moribundo, seus olhos atingiram o máximo que as órbitas permitiam.
Toda a força represada durante os dois longos anos rompeu o dique dos seus, ainda, lindos olhos. Água e sal suficiente para nutrir aquela terra ressequida. Deixou que a última gota de seu oceano de dor percorresse seu trajeto predestinado e procurou, aturdida, pela reportagem completa.
Novamente sua foto, agora maior, página inteira. Com dificuldade percorreu cada linha, cada palavra, cada letra daquela página. Por fim, no derradeiro parágrafo deparou-se incrédula: “Neste belo trabalho, o premiado fotógrafo conseguiu em um único clique capturar toda a essência dessa linda criatura. Seus olhos impenetráveis reluzem tal como um farol de uma juventude impúbere. Feito o famoso sorriso criado por da Vinci, conseguiu reproduzir magistralmente o indecifrável, o inalcançável. Que doces sonhos ocultam-se por detrás desses inacreditavelmente belos olhos verdes?”
            Derradeiras lágrimas percorreram seu rosto e, como que por capricho, pousaram suavemente sobre a foto. Sobre os olhos impressos no papel. O sal corrosivo, por fim, turvou por completo o brilho enigmático dos olhos na foto premiada.