terça-feira, 30 de setembro de 2014

A MENINA QUE QUERIA SER BACHAREL

Josiane queria ser bacharel em Direito. A moça tinha uma moto, tinha medo do escuro, mas andava no breu.
            Josiane carregava uma joia, não estava sozinha. O que ia na cabeça de Josiane quando pegou a contra mão? Avaliação de riscos. Segundos para decidir entre a contravenção de trânsito e o medo do viaduto distante, escuro e de mau agouro. Josiane era paranoica? Tinha delírios persecutórios?
            A multa ou sua integridade? Os pontos na carteira ou a preservação de sua linhagem? Pesadamente, carretas apressadas tentam escoar a produção e, certamente, devem ter interferido em sua avaliação. Josiane não é apenas um nome. Josiane é uma comunidade inteira que tenta aparecer por sobre o número frio da estatística. Josiane é o nome de três mil estudantes universitários e outras centenas de servidores que arriscam a vida para mudar a história. Suas histórias pessoais, de seus familiares, de suas cidades e do nosso país.
            Josiane poderia ter feito o contorno. Logo ali, a 2 km. Josiane poderia ter parado sua moto e cortado o mato alto para poder ser vista. Josiane poderia ter parado, quando a inscrição no asfalto solicitou, e calmamente ter entrado no vão escuro do viaduto. Poderia... Quem sabe até ter enfeitado e iluminado esse vão sem atrativo algum.
            Josiane não fez nada disso. Mas essa unidade estatística fez mais. Josiane mobilizou sua comunidade. Josiane forneceu os pneus para serem transformados em fumaça preta. Josiane emprestou as canetas e cartolinas para que virassem protesto. Josiane foi o convite-convocação entregue a cada autoridade. Josiane segurou o microfone, regulou o som e promoveu o debate.
            Josiane ficou triste de ouvir o Sr. Fulano de Tal dizer que aquilo era um show. Josiane chorou ao ver que o empurra-empurra de responsabilidades queriam carregar sua história para a gaveta eterna. Josiane sentiu falta de alguns representantes e autoridades que deveriam estar honrando seu nome. Josiane pode se tornar um número que irá compor algum gráfico no futuro e nesse gráfico nem conseguiremos distingui-la. Pode, mas não irá. Na impossibilidade física, Josiane conseguiu responder à chamada de sua professora. Alto e claro ela gritou: Presente!
            E todos nós pedimos que ela permaneça presente e que abra as gavetas empoeiradas, arranque os acordos firmados e grite, grite muito alto Josiane. E que nós tenhamos ouvidos de ouvir!
            Josiane queria ser bacharel... não deu! Virou manifesto.
           
           



sábado, 4 de janeiro de 2014

Sobre nada ou sobre tudo?
(por Alexandre Braoios)

         Hoje vou escrever. Não posso mais guardar essas palavras feitas de ranço e perfume que se amotinam, vou expulsá-las. Se não pela boca, que sejam pelas mãos. Oxalá encontrem o caminho limpo e sinalizado para não se perderem no limbo. Agora vai, custe o que custar.
            O quê depositar no papel se as palavras se amontoam numa orgia caótica e se desalinham insistentemente? O sempre protagonista amor? A política diária, arredia e desinteressante? A guerra pornográfica em cada rua tupiniquim? O derretimento do ártico? Ou a nova travessura do meu filhote canino que só a mim interessa? As ideias me brindam, mas elas preferem beber só. E na tentativa insistente de fazê-las ganhar o papel, levantam-se derrubando as cadeiras, como donzelas ofendidas diante de um galanteio mais ousado.
            Independente da natureza do que se pretende escrever, a primeira palavra nasce a fórceps. Um enorme bebê que se recusa a sair do aconchego uterino. Abrir o ventre e tirá-la imatura é blasfêmia contra o Divino. Mesmo às custas de horas dolorosas, devem ser paridas artesanalmente, ao seu tempo.
            Ao despontar, dilata e lacera o caminho estreito. Vez ou outra permanece ali parada a meio caminho entre o dito e o não escrito. Mostra somente a sílaba em embrião à espera da gota última que se tornará um dilúvio apocalíptico. Mas como dói o nascimento da primogênita. E que ingrata tarefa a de guiar suas irmãs pelo labirinto virgem das inéditas ideias ou mesmo daquelas já mastigadas, cuspidas e secas ao tempo.
            Não importa onde, como e nem com quem foram concebidas. Elas simplesmente nascem, como uma ameba assexuada que devagarinho lançam seus pseudópodes em busca da ideia nutritiva. Arrasta-se disforme e desengonçada pelo limo pegajoso que encobre a clareza e a exatidão. Tão logo chega ao mundo, agita-se sorridente à espera do que lhe dê forma e função: a ideia, o assunto, o mote. Algumas já nascem predestinadas, outras desvirtuam o que lhe fora proposto. Rebelam-se com seu criador e disparam numa independência mediúnica. É como o filho idealizado que teima em decepcionar as expectativas paternas. Aquele que foi milimetricamente gerado para ser médico, torna-se poeta. Ou ainda (desgosto supremo!), o que foi planejado para ser esse último, teima na exatidão e frieza matemática.

            Independente do seu destino, tanto a primogênita quanto suas irmãs devem ser aninhadas, cuidadas, alimentadas. Banhos e mimos devem ser aplicados metodicamente para não sofrerem assaduras piegas. Aos poucos ganham forma e atingem a maturidade inevitável. Muitas morrem jovens, com todas as pautas pela frente, enquanto outras são eternas, nunca criam rugas e rejuvenescem a cada leitura. Não importa sobre o que dissertam, permanecem belas pelo simples fato de representarem magistralmente o que parece ser inexprimível no âmbito físico, aquilo que só é pleno quando ainda não alcançou a atmosfera, o que só pode ser definido por meio de sensações. A simples tentativa de materialização acaba por desfigurá-lo. O grau de desfiguração depende exclusivamente daquele que as põe no mundo.