sábado, 4 de janeiro de 2014

Sobre nada ou sobre tudo?
(por Alexandre Braoios)

         Hoje vou escrever. Não posso mais guardar essas palavras feitas de ranço e perfume que se amotinam, vou expulsá-las. Se não pela boca, que sejam pelas mãos. Oxalá encontrem o caminho limpo e sinalizado para não se perderem no limbo. Agora vai, custe o que custar.
            O quê depositar no papel se as palavras se amontoam numa orgia caótica e se desalinham insistentemente? O sempre protagonista amor? A política diária, arredia e desinteressante? A guerra pornográfica em cada rua tupiniquim? O derretimento do ártico? Ou a nova travessura do meu filhote canino que só a mim interessa? As ideias me brindam, mas elas preferem beber só. E na tentativa insistente de fazê-las ganhar o papel, levantam-se derrubando as cadeiras, como donzelas ofendidas diante de um galanteio mais ousado.
            Independente da natureza do que se pretende escrever, a primeira palavra nasce a fórceps. Um enorme bebê que se recusa a sair do aconchego uterino. Abrir o ventre e tirá-la imatura é blasfêmia contra o Divino. Mesmo às custas de horas dolorosas, devem ser paridas artesanalmente, ao seu tempo.
            Ao despontar, dilata e lacera o caminho estreito. Vez ou outra permanece ali parada a meio caminho entre o dito e o não escrito. Mostra somente a sílaba em embrião à espera da gota última que se tornará um dilúvio apocalíptico. Mas como dói o nascimento da primogênita. E que ingrata tarefa a de guiar suas irmãs pelo labirinto virgem das inéditas ideias ou mesmo daquelas já mastigadas, cuspidas e secas ao tempo.
            Não importa onde, como e nem com quem foram concebidas. Elas simplesmente nascem, como uma ameba assexuada que devagarinho lançam seus pseudópodes em busca da ideia nutritiva. Arrasta-se disforme e desengonçada pelo limo pegajoso que encobre a clareza e a exatidão. Tão logo chega ao mundo, agita-se sorridente à espera do que lhe dê forma e função: a ideia, o assunto, o mote. Algumas já nascem predestinadas, outras desvirtuam o que lhe fora proposto. Rebelam-se com seu criador e disparam numa independência mediúnica. É como o filho idealizado que teima em decepcionar as expectativas paternas. Aquele que foi milimetricamente gerado para ser médico, torna-se poeta. Ou ainda (desgosto supremo!), o que foi planejado para ser esse último, teima na exatidão e frieza matemática.

            Independente do seu destino, tanto a primogênita quanto suas irmãs devem ser aninhadas, cuidadas, alimentadas. Banhos e mimos devem ser aplicados metodicamente para não sofrerem assaduras piegas. Aos poucos ganham forma e atingem a maturidade inevitável. Muitas morrem jovens, com todas as pautas pela frente, enquanto outras são eternas, nunca criam rugas e rejuvenescem a cada leitura. Não importa sobre o que dissertam, permanecem belas pelo simples fato de representarem magistralmente o que parece ser inexprimível no âmbito físico, aquilo que só é pleno quando ainda não alcançou a atmosfera, o que só pode ser definido por meio de sensações. A simples tentativa de materialização acaba por desfigurá-lo. O grau de desfiguração depende exclusivamente daquele que as põe no mundo.