segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Remendo






REMENDO

(Alexandre Braoios)


Vendo a esposa analisando dezenas de cacos coloridos sobre a mesa, ele questiona:
           –      O que você está fazendo, Renata? 
         –   Vendo se dá para recuperar essa tigela que você derrubou de novo - respondeu sem           nem levantar os olhos. – Não quer me ajudar?
           –      Você não está achando que vai conseguir colar tudo de novo, está?
           –      Não sei, vou tentar.
           –      Boa sorte.
       Quatro horas mais tarde, a mulher continua tentando encontrar os encaixes. O marido aparece novamente na porta da cozinha, vê que apenas cinco pedaços haviam sido colados:
           –      Ainda não desistiu?
Renata apenas nega com a cabeça e continua concentrada no quebra-cabeça de porcelana. 
 Jogue isso fora, nem tinha tanto valor assim. Podemos comprar outra e você não precisa se desgastar com isso.
      Me deixe tentar – respondeu com a voz um tanto embargada.
      Turrona. Vou tomar uma cerveja e volto logo.
Mais algumas horas se passaram e Renata sequer se lembrou comer. Já no final da tarde, o marido volta com hálito alcoolizado e andar trôpego.
      Não acredito que você ainda está perdendo seu tempo com esse monte de porcaria. Olha só, você não chegou nem à metade. – O tom da voz já denotava irritação.
      Tem razão, não vou conseguir.
      Eu te disse. Você nunca me ouve, acha que pode consertar tudo.
      Tá certo. – Respirou fundo – Quero o divórcio.

sábado, 12 de outubro de 2013




Mais um conto inspirado em uma música. Dessa vez, escolhi Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. Música ótima e sempre atual. De alguma forma me lembrou a história de Grace no filme Dogville de Lars von Trier. Ao lado um vídeo com a atriz Letícia Sabatella interpretando a música. Achei fantástico.








GENI E O ZEPELIM

Por Alexandre Braoios

Desde quando a memória me permite alcançar, Genivaldo Napoleão Gonzaga renegava a bola e o estilingue para brincar com as bonecas de suas primas. Quando não conseguia, improvisava com um sabugo de milho transformado em um pequeno projeto de Barbie. Aos treze anos Genivaldo renegou também o nome de batismo e exigiu que o chamassem Geni. Apesar do alvoroço, do desgosto, do desconforto, o pai sabia que não podia se opor .
O tempo e a estranheza passaram lentamente e quando dei por mim Geni já se fizera mulher, com todos os atributos que o gênero permitia. Sem excessos. A conta exata para ser Genny (a nova grafia foi um desses caprichos tipicamente feminino).  Moça bonita, líder da comunidade pobre em que vivia. Angariou, no grito, melhorias para o bairro. E a transformação meticulosamente engendrada já ficara no passado.
Aos trinta, desistiu de esperar pelo príncipe. Seletiva que era, não se envolvia com qualquer um. E olha que a lista de candidatos não era curta. Mas propostas para encontros furtivos não a seduziam. Genny exigia mais.
Foi então que ela conheceu o belo sargento que patrulhava as vielas do bairro. De encantos se quedou. Homem educado, forte e bonito. O rapaz, novato por aquelas bandas, também se interessou pela morena curvilínea. Pouco a pouco, olhar a olhar, a aproximação se deu. Eram vistos juntos em puro sorriso. Mas com a intimidade iminente, Genny teve de se revelar. Susto passageiro, devagarinho ele aceitou sua condição peculiar. Mas seu povo, por tanto tempo defendido, não quis a união. Xingaram, amaldiçoaram e até um protesto organizaram. Somos contra o descaramento, lia-se nos cartazes.
Tinhosa que era, Genny insistiu no seu propósito. Armou festa e tudo o mais. Mas o povo ensandecido quebrou tudo e não deu ouvidos, e sobre o noivo avançou. Todo o povo se esqueceu da liderança de Genny. Nada adiantou ela bradar e ameaçar a turba. Seu sonho desintegrou-se sob seu olhar. O noivo, ensanguentado, nos seus braços repousou. E num último pedido, aos céus se dirigiu. Em meio a lágrimas teimosas um dirigível avistou. Prateado e gigante, com enormes letras contrastantes seu amado lhe escreveu: EU TE AMO, GENNY. Logo abaixo da declaração assinara o moribundo: Sempre seu, Valdo.