quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O Reinado de Nina





O Reinado de Nina
(Alexandre Braoios)




Nina acordou de sobressalto, sem motivo aparente. Nenhum ruído se ouviu, apenas acordou com a respiração ofegante e transpirando. Revirou-se na cama uma, duas, três vezes. E nada. Arrepiava-se intermitentemente. Paralisada, não pôde se levantar para acender a luz e a voz não saiu quando tentou chamar por alguém que pudesse lhe acudir. Buscou com os olhos, pelas paredes e pelo teto, por sua princesa preferida. O quarto era decorado com inúmeras borboletas, estrelas, fadas e princesas que brilhavam há anos e ajudavam a acalmá-la no escuro.            
            Cobriu-se totalmente com o lençolzinho rosa, apenas o nariz e olhos para fora, e nele era possível ver o embrião da primeira espinha. Alguns minutos depois Nina abriu uma pequena fresta no seu escudo de algodão e viu, uma a uma, suas fadas e borboletas se apagando lentamente, como que agonizando. Imediatamente colocou a mão no ventre e gemeu de dor. Contorceu-se como se quisesse aliviar.
            O suor ficou mais abundante. Com os olhos espremidos e os dentes cravados no lábio inferior tentava alcançar o abajur. Também não conseguiu. Estava sozinha, paralisada de dor. Deve ter pensado que iria morrer, como suas fadas. Mas a noite se arrastou, e Nina continuava viva. Com dor, mas viva.
Próximo ao amanhecer, o sono a venceu.
            A luz natural iluminou o quarto e ela continuava encolhida, mas adormecida. Como estava atrasada, sua mãe entrou para chamá-la. Suavemente, como de costume, a mão maternal tirou o cabelo de seu rosto e um suave beijo acordou Nina. A pequena, agarrou-se ao pescoço da mãe:
      Pensei que tinha morrido.
      Por que minha princesa?
      Minha barriga dói muito, mãe.
O abraço se tornou mais terno.
 – Vá tomar um banho e depois vamos procurar um remédio pra sua dor – disse, ajudando a menina a se levantar. Mas deparou-se com o lençol manchado, abriu um sorriso: - Acho que está na hora da minha princesa virar rainha.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Remendo






REMENDO

(Alexandre Braoios)


Vendo a esposa analisando dezenas de cacos coloridos sobre a mesa, ele questiona:
           –      O que você está fazendo, Renata? 
         –   Vendo se dá para recuperar essa tigela que você derrubou de novo - respondeu sem           nem levantar os olhos. – Não quer me ajudar?
           –      Você não está achando que vai conseguir colar tudo de novo, está?
           –      Não sei, vou tentar.
           –      Boa sorte.
       Quatro horas mais tarde, a mulher continua tentando encontrar os encaixes. O marido aparece novamente na porta da cozinha, vê que apenas cinco pedaços haviam sido colados:
           –      Ainda não desistiu?
Renata apenas nega com a cabeça e continua concentrada no quebra-cabeça de porcelana. 
 Jogue isso fora, nem tinha tanto valor assim. Podemos comprar outra e você não precisa se desgastar com isso.
      Me deixe tentar – respondeu com a voz um tanto embargada.
      Turrona. Vou tomar uma cerveja e volto logo.
Mais algumas horas se passaram e Renata sequer se lembrou comer. Já no final da tarde, o marido volta com hálito alcoolizado e andar trôpego.
      Não acredito que você ainda está perdendo seu tempo com esse monte de porcaria. Olha só, você não chegou nem à metade. – O tom da voz já denotava irritação.
      Tem razão, não vou conseguir.
      Eu te disse. Você nunca me ouve, acha que pode consertar tudo.
      Tá certo. – Respirou fundo – Quero o divórcio.

sábado, 12 de outubro de 2013




Mais um conto inspirado em uma música. Dessa vez, escolhi Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. Música ótima e sempre atual. De alguma forma me lembrou a história de Grace no filme Dogville de Lars von Trier. Ao lado um vídeo com a atriz Letícia Sabatella interpretando a música. Achei fantástico.








GENI E O ZEPELIM

Por Alexandre Braoios

Desde quando a memória me permite alcançar, Genivaldo Napoleão Gonzaga renegava a bola e o estilingue para brincar com as bonecas de suas primas. Quando não conseguia, improvisava com um sabugo de milho transformado em um pequeno projeto de Barbie. Aos treze anos Genivaldo renegou também o nome de batismo e exigiu que o chamassem Geni. Apesar do alvoroço, do desgosto, do desconforto, o pai sabia que não podia se opor .
O tempo e a estranheza passaram lentamente e quando dei por mim Geni já se fizera mulher, com todos os atributos que o gênero permitia. Sem excessos. A conta exata para ser Genny (a nova grafia foi um desses caprichos tipicamente feminino).  Moça bonita, líder da comunidade pobre em que vivia. Angariou, no grito, melhorias para o bairro. E a transformação meticulosamente engendrada já ficara no passado.
Aos trinta, desistiu de esperar pelo príncipe. Seletiva que era, não se envolvia com qualquer um. E olha que a lista de candidatos não era curta. Mas propostas para encontros furtivos não a seduziam. Genny exigia mais.
Foi então que ela conheceu o belo sargento que patrulhava as vielas do bairro. De encantos se quedou. Homem educado, forte e bonito. O rapaz, novato por aquelas bandas, também se interessou pela morena curvilínea. Pouco a pouco, olhar a olhar, a aproximação se deu. Eram vistos juntos em puro sorriso. Mas com a intimidade iminente, Genny teve de se revelar. Susto passageiro, devagarinho ele aceitou sua condição peculiar. Mas seu povo, por tanto tempo defendido, não quis a união. Xingaram, amaldiçoaram e até um protesto organizaram. Somos contra o descaramento, lia-se nos cartazes.
Tinhosa que era, Genny insistiu no seu propósito. Armou festa e tudo o mais. Mas o povo ensandecido quebrou tudo e não deu ouvidos, e sobre o noivo avançou. Todo o povo se esqueceu da liderança de Genny. Nada adiantou ela bradar e ameaçar a turba. Seu sonho desintegrou-se sob seu olhar. O noivo, ensanguentado, nos seus braços repousou. E num último pedido, aos céus se dirigiu. Em meio a lágrimas teimosas um dirigível avistou. Prateado e gigante, com enormes letras contrastantes seu amado lhe escreveu: EU TE AMO, GENNY. Logo abaixo da declaração assinara o moribundo: Sempre seu, Valdo.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Abaixo, três versões de uma mesma história, com a mesma temática, partindo de um conto maior, mais ambientado. Em seguida um conto menor, mais enxuto, até chegar a um mini-conto. Mais uma atividade desenvolvida da oficina de criação literária. Ótimo exercício.










(DES)ESPERANÇA
(1a. versão)

D. Elvira ajeitava as brasas e já pensava no sacrifício que ia ser conseguir mais lenha. Já não aguentava procurar e cortar a madeira e o neto ainda era magricela demais pra dar conta do serviço pesado. Com o vizinho mais próximo ela não queria conversa e toda vez que precisava de mais lenha tinha que torcer pra aparecer algum desavisado. Mas já fazia tempo que não apeava nenhuma criatura por aquelas bandas.
– Eliaaaasss, vem armuçá, minino – berrou a velhinha suada de mexer o angu no forno à lenha.
  Há muito essa era a única comida que podia dar ao neto. A pensão do marido e a fraqueza do corpo não permitiam variar. A situação piorou ainda mais quando seu único filho tombou morto por causa do coração fraco. – Tão fraco que num servia nem pra escolhê muié – dizia sempre. A nora, nem bem enterrou o marido, fugiu com o vizinho de cerca e largou a cria pra ela cuidar e dar de comer. – Discarada – pensou. E por isso relutava em pedir ajuda na vizinhança, pois sempre a atendiam com olhar de troça.
– To indo agorinha  – respondeu o menino que se demorava olhando o céu.
Desde cedinho brincava à sombra da enorme paineira e, vez ou outra, fitava o céu e matutava, com ares de querer saber. Quando finalmente apontou na cozinha de cimento cru vermelho, a avó já estava armando outro berro.
    Senta e come, minino tinhoso.
    Angu de novo, voinha? – falava por falar, só para provocar a pobrezinha. Como se fosse um arriscado acordo que houvesse firmado.
Sem responder, D. Elvira suspirou fundo e deu um safanão na cabeça do moleque, que não esboçou reclamação ou choro, pois não tinha um dia sequer que não levava tapa, beliscão ou coisa parecida. Nem sentia mais, acostumou-se com o carinho rude da avó. Fazia parte do acordo.
    Voinha, as nuvem é feita do quê? A senhora já pegou nelas...?
    Pare de marmota - Interrompeu antes que ele conseguisse enfiar vinte perguntas de uma só vez – Perguntadeiro como meu  fio João – lembrou, saudosa. A cada vez que se lembrava do filho, o ventre latejava insistente. Dor que só as mães conhecem. E como o filho também se parecia com o marido, a pontada no peito também aparecia. Pontada que só quem perdeu um companheiro valoroso era capaz de sentir.
Pensativo, enquanto engolia cada colherada da insonsa comida, Elias maquinava sobre a dúvida que lhe perseguia desde o começo daquela manhã.  Se tivesse  a mãe ou pai por perto, eles sabia responder – lamentou em pensamento. Elias ainda não entendia direito o porquê dos pais terem sumido. Toda vez que perguntava, a avozinha ralhava com ele. Também fazia parte do acordo.
    Deve de sê de paina. As paina deve sair avuano e na hora que chega no céu elas vira nuvem.
Outro tabefe.
Mas a dúvida não arrefeceu. Atiçava e provocava comichão. Ia e vinha nas milhares de possibilidades. Pelo menos esquecia do angu empelotado. Matutou, ponderou e, prestes a terminar a gororoba, finalmente achou a resposta.
    Já sei, é de argodão doce – disse satisfeito e orgulhoso.
  Cale a boca e come esse angu, disgraça – disse a velha, sentindo o peito apertado de saudade, dor e amargura.
    Ta bão. Mas que é, é. No dia que eu consegui pegá a nuvem, vamo come ela tudinho, voinha.
Sorriu discretamente ao ver a teimosia de seu marido e de seu filho estampada em cores vivas em seu neto. Mas, ato contínuo, lascou um beliscão.
De um pulo, Elias correu segurando o braço doído. Rindo e pulando, voltou à sombra da paineira para tentar sentir o doce das nuvens acima dele. Mas elas iam alto demais. Agora precisava encontrar um jeito de trazer elas para perto, ou quem sabe, alcança-las lá no alto. 


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(DES)ESPERANÇA
(2a. versão)


               - Eliaaaasss, vem armuçá, minino – berrou a velhinha suada de mexer o angu no forno à lenha.
               - To indo agorinha  – respondeu o menino que se demorava olhando o céu.
Quando finalmente apontou na cozinha de cimento cru vermelho, a avó já estava armando outro berro.
          - Senta e come, minino tinhoso.
              Angu de novo, voinha?
      Sem responder, deu um safanão na cabeça do moleque.
              Voinha, as nuvem é feita do quê? A senhora já pegou nelas?
              Pare de marmota.
Pensativo, enquanto engolia cada colherada da insonsa comida, Elias maquinava sobre a dúvida que lhe perseguia desde o começo daquela manhã.
               Deve de sê de paina.
      Outro tabefe.
Mas a dúvida não arrefeceu. Atiçava e provocava comichão. Ia e vinha nas milhares de possibilidades. Pelo menos esquecia do angu empelotado. Matutou, ponderou e prestes a terminar a gororoba, finalmente achou a resposta.
                 Já sei, é de argodão doce – disse satisfeito.
               Cale a boca e come esse angu, disgraça.



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(DES)ESPERANÇA
(3a. versão - Mini Conto)


Engolindo a última porção do angu, sonhava com o algodão doce das nuvens.