Sobre
nada ou sobre tudo?
(por Alexandre Braoios)
Hoje vou escrever. Não posso mais
guardar essas palavras feitas de ranço e perfume que se amotinam, vou
expulsá-las. Se não pela boca, que sejam pelas mãos. Oxalá encontrem o caminho
limpo e sinalizado para não se perderem no limbo. Agora vai, custe o que
custar.
O
quê depositar no papel se as palavras se amontoam numa orgia caótica e se
desalinham insistentemente? O sempre protagonista amor? A política diária,
arredia e desinteressante? A guerra pornográfica em cada rua tupiniquim? O
derretimento do ártico? Ou a nova travessura do meu filhote canino que só a mim
interessa? As ideias me brindam, mas elas preferem beber só. E na tentativa
insistente de fazê-las ganhar o papel, levantam-se derrubando as cadeiras, como
donzelas ofendidas diante de um galanteio mais ousado.
Independente
da natureza do que se pretende escrever, a primeira palavra nasce a fórceps. Um
enorme bebê que se recusa a sair do aconchego uterino. Abrir o ventre e tirá-la
imatura é blasfêmia contra o Divino. Mesmo às custas de horas dolorosas, devem
ser paridas artesanalmente, ao seu tempo.
Ao
despontar, dilata e lacera o caminho estreito. Vez ou outra permanece ali
parada a meio caminho entre o dito e o não escrito. Mostra somente a sílaba em
embrião à espera da gota última que se tornará um dilúvio apocalíptico. Mas
como dói o nascimento da primogênita. E que ingrata tarefa a de guiar suas
irmãs pelo labirinto virgem das inéditas ideias ou mesmo daquelas já
mastigadas, cuspidas e secas ao tempo.
Não
importa onde, como e nem com quem foram concebidas. Elas simplesmente nascem,
como uma ameba assexuada que devagarinho lançam seus pseudópodes em busca da
ideia nutritiva. Arrasta-se disforme e desengonçada pelo limo pegajoso que
encobre a clareza e a exatidão. Tão logo chega ao mundo, agita-se sorridente à
espera do que lhe dê forma e função: a ideia, o assunto, o mote. Algumas já
nascem predestinadas, outras desvirtuam o que lhe fora proposto. Rebelam-se com
seu criador e disparam numa independência mediúnica. É como o filho idealizado
que teima em decepcionar as expectativas paternas. Aquele que foi milimetricamente
gerado para ser médico, torna-se poeta. Ou ainda (desgosto supremo!), o que foi
planejado para ser esse último, teima na exatidão e frieza matemática.
Independente
do seu destino, tanto a primogênita quanto suas irmãs devem ser aninhadas,
cuidadas, alimentadas. Banhos e mimos devem ser aplicados metodicamente para não
sofrerem assaduras piegas. Aos poucos ganham forma e atingem a maturidade inevitável.
Muitas morrem jovens, com todas as pautas pela frente, enquanto outras são
eternas, nunca criam rugas e rejuvenescem a cada leitura. Não importa sobre o
que dissertam, permanecem belas pelo simples fato de representarem
magistralmente o que parece ser inexprimível no âmbito físico, aquilo que só é
pleno quando ainda não alcançou a atmosfera, o que só pode ser definido por
meio de sensações. A simples tentativa de materialização acaba por desfigurá-lo.
O grau de desfiguração depende exclusivamente daquele que as põe no mundo.
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